terça-feira, 29 de setembro de 2009

Meu pai, meu herói

Quarta-feira, 22 de Abril de 2009

Eu lembro como se fosse hoje. Ele e minha mãe estavam na sala do nosso apartamento, discutindo. Eles falavam alto. Meu pai virou as costas e foi pro quarto. Minha mãe sentou no sofá e chorou. Eu tinha 2 anos e meio. E segui meu pai. Lembro dele mexendo no guarda-roupa e chorando. Lembro dele passando a mão na minha cabeça. Depois disso, branco total.


Logo após me surge uma outra memória: minha mãe me pegou no colo e me colocou no carro da tia Cristina. Se não me engano, era o mesmo Chevette marrom que ela teve até quase os meus dez anos. No carro também tinham umas malas, umas panelas. Lembro também que tinham umas tábuas. Tinha um outro carro conosco. Da cunhada da tia Cristina. No dela, estava o fogão da minha casa. E mais tábuas, que hoje acho que eram da minha cômoda e berço. Lembro que chegamos à casa da minha avó e tiramos tudo do carro. Eu estava prestes a fazer 4 anos. Só sai desta casa aos 24 anos, no dia do meu casamento.

No intervalo destes 20 anos, posso dizer que vi o meu pai umas 20 vezes, uma por ano. Talvez esteja sendo injusta, porque lembro das férias em que fui à casa dele. Mas as ausências posteriores compensam aqueles dias em que passei lá. Eu devia ter uns 5 ou 6 anos quando ele mudou pro Rio de Janeiro. E, se perto ele já fazia questão de não estar perto da família que ele formou, longe, o pretexto foi garantido.

Por muito tempo eu nem senti a falta dele. Como é que se sente falta de algo que não está acostumada? Também tinha os meus tios, que, ainda solteiros, moravam na casa da minha avó e eram a figura masculina para mim. Sem contar o meu avô, que me dava “banho roxo” quando eu estava com catapora, me levava para a escola e via desenho comigo. Foi meu avô quem tirou as rodinhas da minha bicicleta. Foi ele quem me ensinou a comer jabuticaba. Uma criança de 7 anos não está pensando que o pai está ausente.

Mas a menina foi crescendo. E a adolescente foi percebendo que faltava uma referência, um pai por perto. Alguém com quem pudesse pedir uma nova permissão quando a minha mãe dizia não. Aquele pai que buscava ou levava à escola. Aquele pai que olhava para a filha e via um xodó. Igual ao pai das minhas amigas.

E foi ai, que em meio a um monte de mulheres que ele me apresentou, eu, aos 12 anos, conheci a nova. Bonita, bem vestida, tentando ser legal. Ela também tinha uma filha que, na época, tinha 4 anos. A mesma idade que eu tinha quando o meu pai se separou da minha mãe. E esta menina estava na casa do meu pai. Ocupando um lugar que era meu. E tudo aquilo que ele não me viu crescer, ele viu nela. Eu ficava me remoendo pensando em quantas vezes ele deve tê-la levado à escola. Quantas vezes ele a pegou no colo no sofá e a colocou para dormir na cama. Quantas vezes ele deve tê-la mandando escovar os dentes. Quantas lembrancinhas de dia dos pais ela deve ter feito para ele na escola.

Eu pensava nestas coisas dia e noite. Me remoía de ciúme, de angústia, de raiva. Ela tinha o pai dela e estava usando o meu. E nos poucos dias em que eu passava nas férias lá, eu confirmava o que eu já sabia e ficava mal. Achava melhor não ter ido.

E foi assim que eu fui me afastando dele. Se ele não precisava de mim, eu também não ia precisar dele. Eu fiquei nove anos sem ver a mulher dele. Nove anos sem ver a filha dela. Nove anos vendo o meu pai apenas no Natal, quando ele vinha à São Paulo. Foi um período muito difícil para mim. Eu chorei muito, fiquei muito amarga em relação a isso. Eu sentia falta do meu pai. Na verdade, eu sentia falta de um pai, de ter alguém ali. E fazia cartas que nunca mandei para ele. Cartas em que eu escrevia tudo isso. Mandei algumas também, que resultaram em mais discussão. E mais afastamento.

Anos depois eu estava de casamento marcado. Era o mês de abril e o casamento seria em outubro. Eu precisava comunicar ao meu pai. Eu queria saber se ele queria entrar comigo na igreja. Em junho eu fui à casa dele. Quase dez anos depois da última vez em que estive lá. Fui apreensiva a viagem toda, pensando em como seria horrível, em tudo o que ia acontecer. Preparei até o Leandro para isso, para que ele não se espantasse com o que visse. E foi ai que tudo aconteceu diferente. Meu pai estava lá nos esperando. Junto com a mulher dele. Eles sorriam e nos esperavam ansiosos também. E a filha dela também queria nos ver. A viagem foi maravilhosa, meu pai foi excelente. E eu voltei a me apaixonar por ele. Pela mulher dele e pela filha dela também. A filha dela que é filha dele e hoje eu também a chamo de minha irmã.

Eu precisei crescer e casar para perceber que não é que o meu pai não me ama, não é que ele não liga para mim. Ele é apenas diferente de mim, a vida dele é diferente da minha. Hoje eu entendo que ele não pode me dar, emocionalmente, tudo o que eu quero, mas eu aceito o que ele consegue me transmitir. Eu sinto falta dele, mas hoje eu posso ligar e matar as saudades.

Hoje, ele e a mulher dele podem vir à minha casa. E eu adoro que eles venham. Ela é uma avó para meu filho, assim como a filha dela, minha irmã, é a tia do Vini. E só hoje eu percebo quanto tempo eu perdi sem o meu pai. E o quanto ele é importante na minha vida. O meu pai não é um exemplo de pai presente, pai-herói que a gente vê e ouve por ai. Muito pelo contrário, ele nunca me deu uma bronca, tampouco viu meu boletim. Mas ele chorou como criança quando entrou comigo na igreja e tremia de emoção quando segurou o neto pela primeira vez no colo.

O meu pai significa para mim que a vida pode ser recomeçada sempre. Que a gente pode rever os sentimentos e pode começar olhar para as coisas sem pré-conceito. Do modo dele, ele queria estar ao meu lado. Do meu modo, eu não via isso.

Para voltar a amar meu pai eu precisei parar para pensar em como ele é. Eu precisei me reavaliar. E eu tenho certeza que para me amar ele também fez isso. Ele não é, ainda, o pai que eu gostaria que o Leandro fosse para o Vinícius. Mas ele já está muito perto de ser, para mim, o pai que eu sempre quis ter.

O meu pai distante. O meu pai-herói.