Desatinos e Confissões
Histórias e ideias de uma mulher que vive perguntando o por quê das coisas.
sábado, 10 de dezembro de 2016
segunda-feira, 16 de novembro de 2015
A apatia do Kurt Cobain
Quando o Kurt Cobain morreu eu
era adolescente e não sabia muito da vida, nem de vocabulário. Continuo sabendo
pouco da vida, mas meu vocabulário enriqueceu bastante e já consigo saber qual
é o significado da palavra empatia, uma das mais repetidas na carta de
despedida que Cobain deixou.
Lembro que na época, sem entender
direito porque um cara rico, bonito, famoso e pai de família tinha feito
aquilo, fui curiosa comprar a revista Bizz pra ler a carta traduzida na
íntegra. Ainda não entendo quais motivos levam alguém a cometer suicídio, mas
confesso que mesmo passando todos esses anos, aquela carta nunca me saiu da cabeça.
Tenho pensando muito no Kurt, na
escolha das palavras finais que usou e que deixou para ser lembrado e deve ter
sido muito triste se despedir do mundo por estar apático. Saber que você é
rodeado de pessoas que esbanjam beleza e empatia e não conseguir se contagiar
com esse sentimento deve ser doloroso demais.
Diante de todos os sentimentos
contraditórios que venho sentindo ultimamente, consigo entender o lado medroso
do Kurt. Tenho vivido em total apatia também. Veja bem: sei bem do que estou
falando. Há mais de uma semana a apatia é algo que tem me dominado. Estou aqui,
presente, mas não estou pensando em estar aqui. Quando estou lá, também me
sinto de corpo presente, com a cabeça em outro lugar.
Falo com todo mundo, converso na
internet, resolvo as coisas da casa. Faço comida, coloco meu filho pra dormir,
oriento meus alunos. Cumpro calendário, corrijo atividade, comprimento as
pessoas. Mas não percebo como estou fazendo essas coisas. O dicionário diz que
apatia é “falta de emoção, motivação, entusiasmo” e não consigo pensar em
definição melhor para todo esse sentimento que venho tentando expressar, sem
conseguir.
Honestamente, não consigo
entender porque tenho me sentido assim. Perdi duas gestações num intervalo de
um ano, mas convenhamos, todos sabíamos que não era algo planejado. Acontece
que elas “aconteceram” e eu não estou achando justo que esse tenha sido o final
das duas. São tantos “por quês” na minha cabeça que mistura o antigo sentimento
da raiva, com indignação e ódio, muito ódio. Passados esses momentos de stress
dos quais nem mais consigo chorar, sinto que estou mais leve e então, meio que
flutuando, tipo um holograma: você me vê, mas eu não estou ali.
Querido Kurt: nunca vou entender
o que leva uma pessoa a tirar a sua própria vida, deixando uma família para
trás, uma história. Mais do que se deixa pra trás, você perdeu tudo o que
poderia viver adiante – e olha, essas possibilidades eram infinitas. Não dá pra
entender.
sábado, 7 de novembro de 2015
Olá, vida. Estou voltando.
Quando um coração idoso para de
bater não há como evitar a sensação de tristeza, mas é algo compreensível. A
morte é esperada assim: para pessoas bem velhinhas, que viveram muito,
aproveitaram os anos e já deixam seus corpos fracos das experiências. Quando
alguém idoso parte a morte não deixa de ser dolorosa, porém fica compreensível.
Mas e quando um coração que ainda
nem começou a viver pro mundo para de bater? Como explicar? Como entender? Como aceitar?
Um coração de quase dez semanas
de vida deveria ser forte, bater bravamente, com aquele barulho deliciosamente
ensurdecedor que toma conta da sala de ultrassom. Um coração que existe há
apenas dez semanas não pode parar assim, de repente. Esse coração tem mais uns
80 anos, no mínimo, para continuar ritmando.
A vida que estava crescendo
dentro de mim não pensa assim.
A vida que estava crescendo
dentro de mim cumpriu seu breve tempo e nos deixou em menos de dez semanas.
Há alguns dias tenho procurado
uma explicação para isso. Já gritei, já xinguei, já chorei até faltar o ar, até
entupir o nariz, até doer os olhos. Já chorei tanto que, juro, senti o coração
doer, o pulmão falhar. Chorei de dor, de tristeza e depois de raiva, de ódio,
de mágoa.
Agora não consigo mais chorar,
mas ainda sinto um ódio que está me fazendo mal, mas que não consigo parar de
sentir. Um ódio que me faz questionar tantos porquês sem respostas.
Um dia esse ódio vai passar. Quem
sabe um dia eu vou entender quais motivos de essas coisas acontecerem. Ouvi de
uma pessoa muito amada que Deus não castiga, Deus nos livra. Quem sabe com quais problemas nasceria essa criança?
Não sei mais se acredito em Deus,
honestamente. Mas ouvir isso de alguém que me quer tão bem foi um alívio, um
acalento. Ela me disse por telefone e eu senti como se fosse um abraço.
Às vezes tudo o que a gente
precisa é de reclusão. Eu precisei e fiquei comigo mesma por uns dias. Agora
preciso de gente por perto. Preciso de amor, de amizade, de risada. Preciso das
pessoas à minha volta para sentir que não sou uma pessoa ruim, que não fui
punida. Preciso estar bem comigo mesma para voltar a sentir que as coisas têm
um motivo para acontecer e que eu sempre soube que a vida não é fácil, tampouco
perfeita. E que isso é só mais uma coisa pela qual nós aqui de casa temos de
passar. Passar juntos, como estamos fazendo. E seguirmos mais fortes e mais
unidos, como sempre fomos.
Não. Não é fácil. Dói tanto que
chega tremer a mão. Chega a franzir a testa. Dói tanto que escurece a vista, enfraquece as pernas.
Mas é preciso continuar. Todos os
dias milhões de corações, no mundo inteiro, param de bater. Nem por isso a vida
deixa de seguir o curso.
O meu coração de dez semanas
deixou de bater. Não vou esquecer isso. Não vou deixar de sentir. Mas eu sei:
eu vou conseguir continuar a viver.
Já é hora de sair desse quarto.
Olá, vida. Estou voltando.
segunda-feira, 6 de abril de 2015
Podia ser minha filha. Podia ser minha aluna.
Hoje de manhã precisei visitar novamente o ortopedista
(hello, bursite!) e fui espectadora de uma cena que não sai da minha cabeça.
Cheguei,
peguei minha senha e sentei. Olhei o painel, tinham 12 números na minha frente,
abri um livro e saí desse mundo por uns instantes. De repente comecei a ouvir
um choro. Choro rouco, de voz grave, gente adulta. Olhei para trás e vi um
homem altíssimo, de camisa rosa clara e bermuda branca. Seu rosto, no entanto,
destoava de toda serenidade que sua roupa trazia: estava transtornado. O choro
era dele, incontrolável, compulsivo e muito, muito triste. A vontade era de
levantar e abraçá-lo, seja lá qualquer que fosse o motivo. Mas eu fiquei ali,
sentada, como uma grande pessoa indiferente à dor dos outros.
Alguns
minutos depois saiu uma mulher de dentro do hospital aos prantos. Encontrou com
ele ali na porta e se abraçaram. Choraram mais. Soluçaram. Apoiaram-se. E então
ele disse: “e agora, o que eu vou fazer?” E ela: “não sei, eu não sei”.
Como se
não fosse triste o suficiente, chegam duas meninas. Uma criança e uma
adolescente. Podia ser minha filha. Podia ser minha aluna. Duas meninas
bonitas, usando o cabelo penteado como minhas alunas usam, com aquelas roupas
que minhas alunas adoram. Duas meninas assim: dessas que a gente vê o tempo
todo. Elas chegaram, olharam para o homem e ele não disse nada. Abaixou a
cabeça. Então, a mais velha gritou: “Nãaaao! Pai, diz que não!” Ela
sentou/desabou no chão e pôs-se a chorar. A mais nova, que também podia ser
minha filha, minha sobrinha, minha aluna, olhou para a irmã no chão e sentou ao
lado dela. Choravam juntas, copiosamente. Foi desesperador.
E eu
ali, sentada, querendo levantar, pegar todo mundo no colo e levar pra casa. Mas
não me mexi. Só olhava ansiosa pro painel, doida para chamarem meu número e
voltar pro meu mundinho onde ninguém estava em apuros. No entanto, Murphy vive
e ainda tinham 8 números na minha frente.
A
família continuava ali, chorando, se abraçando, tentando entender. Os
conhecidos iam chegando, choravam e se apoiavam juntos e a adolescente então
disse: “Eu não quero enterrar a minha mãe, pai!” Olhou para a mulher que havia
saído antes aos prantos de dentro do hospital e pediu: “Tia, por favor, tia, me
ajuda”.
Não
aguentei. De espectadora passei a personagem. Baixei a cabeça e senti meu olho
umedecer e a respiração fraquejar. Estava ali, ao meu lado, uma família que
acabava de sofrer precocemente a dor da morte. E ninguém podia fazer mais nada.
Eram 8 horas da manhã de uma segunda-feira e aquelas pessoas não podiam esperar
mais nada de bom para esta semana.
Foi
chegando cada vez mais gente ali com eles e minha senha finalmente foi chamada,
para aliviar minha culpa pela inércia. Levantei e fui para a triagem pensando
que havia acordado com muita dor no braço, atrasada, irritada, tendo que ir pro
trabalho e cheia de coisas para resolver e pagar nessa semana: ou seja, acordei
reclamando de tudo, brava com o novo dia, com a nova semana, com a chegada da
segunda-feira.
Quando
cheguei dentro da sala da triagem, o enfermeiro, alheio a tudo que estava
acontecendo do lado de fora, me perguntou: “e então, qual é o seu problema?" Eu ia começar a dizer tudo quando engoli seco e respondi:
- Nenhum, moço. Definitivamente, eu não tenho problema
nenhum.
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