segunda-feira, 16 de novembro de 2015

A apatia do Kurt Cobain

Quando o Kurt Cobain morreu eu era adolescente e não sabia muito da vida, nem de vocabulário. Continuo sabendo pouco da vida, mas meu vocabulário enriqueceu bastante e já consigo saber qual é o significado da palavra empatia, uma das mais repetidas na carta de despedida que Cobain deixou.

Lembro que na época, sem entender direito porque um cara rico, bonito, famoso e pai de família tinha feito aquilo, fui curiosa comprar a revista Bizz pra ler a carta traduzida na íntegra. Ainda não entendo quais motivos levam alguém a cometer suicídio, mas confesso que mesmo passando todos esses anos, aquela carta nunca me saiu da cabeça.
Tenho pensando muito no Kurt, na escolha das palavras finais que usou e que deixou para ser lembrado e deve ter sido muito triste se despedir do mundo por estar apático. Saber que você é rodeado de pessoas que esbanjam beleza e empatia e não conseguir se contagiar com esse sentimento deve ser doloroso demais.

Diante de todos os sentimentos contraditórios que venho sentindo ultimamente, consigo entender o lado medroso do Kurt. Tenho vivido em total apatia também. Veja bem: sei bem do que estou falando. Há mais de uma semana a apatia é algo que tem me dominado. Estou aqui, presente, mas não estou pensando em estar aqui. Quando estou lá, também me sinto de corpo presente, com a cabeça em outro lugar.
Falo com todo mundo, converso na internet, resolvo as coisas da casa. Faço comida, coloco meu filho pra dormir, oriento meus alunos. Cumpro calendário, corrijo atividade, comprimento as pessoas. Mas não percebo como estou fazendo essas coisas. O dicionário diz que apatia é “falta de emoção, motivação, entusiasmo” e não consigo pensar em definição melhor para todo esse sentimento que venho tentando expressar, sem conseguir.

Honestamente, não consigo entender porque tenho me sentido assim. Perdi duas gestações num intervalo de um ano, mas convenhamos, todos sabíamos que não era algo planejado. Acontece que elas “aconteceram” e eu não estou achando justo que esse tenha sido o final das duas. São tantos “por quês” na minha cabeça que mistura o antigo sentimento da raiva, com indignação e ódio, muito ódio. Passados esses momentos de stress dos quais nem mais consigo chorar, sinto que estou mais leve e então, meio que flutuando, tipo um holograma: você me vê, mas eu não estou ali.
Querido Kurt: nunca vou entender o que leva uma pessoa a tirar a sua própria vida, deixando uma família para trás, uma história. Mais do que se deixa pra trás, você perdeu tudo o que poderia viver adiante – e olha, essas possibilidades eram infinitas. Não dá pra entender.

Mas dá para saber o que você sentiu. Dá para saber bem o que é sentir o mundo todo ao seu redor esbanjando empatia e você ali, só querendo sumir sem saber pra onde, porque não importa para onde você vá, ela te segue: a apatia.

sábado, 7 de novembro de 2015

Olá, vida. Estou voltando.

Quando um coração idoso para de bater não há como evitar a sensação de tristeza, mas é algo compreensível. A morte é esperada assim: para pessoas bem velhinhas, que viveram muito, aproveitaram os anos e já deixam seus corpos fracos das experiências. Quando alguém idoso parte a morte não deixa de ser dolorosa, porém fica compreensível.

Mas e quando um coração que ainda nem começou a viver pro mundo para de bater? Como explicar? Como entender? Como aceitar?

Um coração de quase dez semanas de vida deveria ser forte, bater bravamente, com aquele barulho deliciosamente ensurdecedor que toma conta da sala de ultrassom. Um coração que existe há apenas dez semanas não pode parar assim, de repente. Esse coração tem mais uns 80 anos, no mínimo, para continuar ritmando.

A vida que estava crescendo dentro de mim não pensa assim.

A vida que estava crescendo dentro de mim cumpriu seu breve tempo e nos deixou em menos de dez semanas.

Há alguns dias tenho procurado uma explicação para isso. Já gritei, já xinguei, já chorei até faltar o ar, até entupir o nariz, até doer os olhos. Já chorei tanto que, juro, senti o coração doer, o pulmão falhar. Chorei de dor, de tristeza e depois de raiva, de ódio, de mágoa.

Agora não consigo mais chorar, mas ainda sinto um ódio que está me fazendo mal, mas que não consigo parar de sentir. Um ódio que me faz questionar tantos porquês sem respostas.

Um dia esse ódio vai passar. Quem sabe um dia eu vou entender quais motivos de essas coisas acontecerem. Ouvi de uma pessoa muito amada que Deus não castiga, Deus nos livra. Quem sabe com quais problemas nasceria essa criança?

Não sei mais se acredito em Deus, honestamente. Mas ouvir isso de alguém que me quer tão bem foi um alívio, um acalento. Ela me disse por telefone e eu senti como se fosse um abraço.

Às vezes tudo o que a gente precisa é de reclusão. Eu precisei e fiquei comigo mesma por uns dias. Agora preciso de gente por perto. Preciso de amor, de amizade, de risada. Preciso das pessoas à minha volta para sentir que não sou uma pessoa ruim, que não fui punida. Preciso estar bem comigo mesma para voltar a sentir que as coisas têm um motivo para acontecer e que eu sempre soube que a vida não é fácil, tampouco perfeita. E que isso é só mais uma coisa pela qual nós aqui de casa temos de passar. Passar juntos, como estamos fazendo. E seguirmos mais fortes e mais unidos, como sempre fomos.

Não. Não é fácil. Dói tanto que chega tremer a mão. Chega a franzir a testa. Dói tanto que escurece a vista, enfraquece as pernas.
Mas é preciso continuar. Todos os dias milhões de corações, no mundo inteiro, param de bater. Nem por isso a vida deixa de seguir o curso.

O meu coração de dez semanas deixou de bater. Não vou esquecer isso. Não vou deixar de sentir. Mas eu sei: eu vou conseguir continuar a viver.

Já é hora de sair desse quarto.

Olá, vida. Estou voltando.



segunda-feira, 6 de abril de 2015

Podia ser minha filha. Podia ser minha aluna.

        Hoje de manhã precisei visitar novamente o ortopedista (hello, bursite!) e fui espectadora de uma cena que não sai da minha cabeça.
    
       Cheguei, peguei minha senha e sentei. Olhei o painel, tinham 12 números na minha frente, abri um livro e saí desse mundo por uns instantes. De repente comecei a ouvir um choro. Choro rouco, de voz grave, gente adulta. Olhei para trás e vi um homem altíssimo, de camisa rosa clara e bermuda branca. Seu rosto, no entanto, destoava de toda serenidade que sua roupa trazia: estava transtornado. O choro era dele, incontrolável, compulsivo e muito, muito triste. A vontade era de levantar e abraçá-lo, seja lá qualquer que fosse o motivo. Mas eu fiquei ali, sentada, como uma grande pessoa indiferente à dor dos outros.
      
     Alguns minutos depois saiu uma mulher de dentro do hospital aos prantos. Encontrou com ele ali na porta e se abraçaram. Choraram mais. Soluçaram. Apoiaram-se. E então ele disse: “e agora, o que eu vou fazer?” E ela: “não sei, eu não sei”.

     Como se não fosse triste o suficiente, chegam duas meninas. Uma criança e uma adolescente. Podia ser minha filha. Podia ser minha aluna. Duas meninas bonitas, usando o cabelo penteado como minhas alunas usam, com aquelas roupas que minhas alunas adoram. Duas meninas assim: dessas que a gente vê o tempo todo. Elas chegaram, olharam para o homem e ele não disse nada. Abaixou a cabeça. Então, a mais velha gritou: “Nãaaao! Pai, diz que não!” Ela sentou/desabou no chão e pôs-se a chorar. A mais nova, que também podia ser minha filha, minha sobrinha, minha aluna, olhou para a irmã no chão e sentou ao lado dela. Choravam juntas, copiosamente. Foi desesperador.

    E eu ali, sentada, querendo levantar, pegar todo mundo no colo e levar pra casa. Mas não me mexi. Só olhava ansiosa pro painel, doida para chamarem meu número e voltar pro meu mundinho onde ninguém estava em apuros. No entanto, Murphy vive e ainda tinham 8 números na minha frente.

   A família continuava ali, chorando, se abraçando, tentando entender. Os conhecidos iam chegando, choravam e se apoiavam juntos e a adolescente então disse: “Eu não quero enterrar a minha mãe, pai!” Olhou para a mulher que havia saído antes aos prantos de dentro do hospital e pediu: “Tia, por favor, tia, me ajuda”.

     Não aguentei. De espectadora passei a personagem. Baixei a cabeça e senti meu olho umedecer e a respiração fraquejar. Estava ali, ao meu lado, uma família que acabava de sofrer precocemente a dor da morte. E ninguém podia fazer mais nada. Eram 8 horas da manhã de uma segunda-feira e aquelas pessoas não podiam esperar mais nada de bom para esta semana.

     Foi chegando cada vez mais gente ali com eles e minha senha finalmente foi chamada, para aliviar minha culpa pela inércia. Levantei e fui para a triagem pensando que havia acordado com muita dor no braço, atrasada, irritada, tendo que ir pro trabalho e cheia de coisas para resolver e pagar nessa semana: ou seja, acordei reclamando de tudo, brava com o novo dia, com a nova semana, com a chegada da segunda-feira.

   Quando cheguei dentro da sala da triagem, o enfermeiro, alheio a tudo que estava acontecendo do lado de fora, me perguntou: “e então, qual é o seu problema?" Eu ia começar a dizer tudo quando engoli seco e respondi:


    - Nenhum, moço. Definitivamente, eu não tenho problema nenhum.